Vamos à história…
Em entrevista para o Roda-Viva, uma das representantes do MPL citou a importância do movimento altermundialista (ou “resistência global”, nas palavras de Naomi Klein) como influência para o grupo. No fim dos anos 90, multidões tomaram as ruas de cidades em todo o mundo, protestando contra os organismos responsáveis pela política da globalização, seu livre comércio e ingerência nos países pobres. Conseguiram grandes feitos como em Seattle, em 1999, impedindo estrategicamente a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio). O movimento colocou em pauta a crítica à globalização destruidora (“globaritarismo”, segundo Milton Santos) e ao capitalismo, além de marcar novas formas de manifestação horizontalizadas, auto-organizadas e com grande uso das chamadas novas tecnologias. Esse foi o chamado movimento altermundialista, alterglobalização ou de resistência global. Mas essa história começa antes, em 1994, no levante zapatista em Chiapas…
Naquele ano vivíamos o recente fim da União Soviética e imperava o discurso do fim da história (do texto homônimo de Francis Fukuyama). O neoliberalismo se auto-proclamava como a vitória da liberdade e da democracia. A vitória, para eles, era a superação do modelo autoritário, restritivo à liberdade, na União Soviética. Em 94 um grupo de origem indígena se levantava em Chiapas e construía um território livre zapatista. O levante foi resultado de anos de trocas entre militantes de esquerda com experiência teórica e guerrilheira e os grupos originários, com suas formas de organização popular e cultura ancestral. Essa construção continuou após 94, num legítimo e conturbado processo do poder popular. (O Zapatismo também influenciou o MPL)
Uma das coisas mais interessantes no Zapatismo é a forma como ele tenta resolver a narrativa maniqueísta “democracia liberal X ditadura”. O movimento denuncia a falsa liberdade do neoliberalismo, sistema baseado em fortes mecanismos de repressão local e global e intensificador das desigualdades em todo mundo. Mas também nega as estruturas burocráticas, verticais e autoritárias da lógica stalinista. Esse fato influenciaria radicalmente as estratégias de grupos organizados. Forma-se, então, uma cadeia mutuamente influenciada de movimentos e levantes na virada do milênio: inicialmente o já citado altermundialista, mas também o Fórum Social Mundial, os Occupy, os indignados na Europa, o Anonymous, o Wikileaks e em menor medida, a Primavera Árabe.
Passe-Livre
No Brasil, um dos grandes herdeiros destas propostas políticas é o Movimento Passe-Livre. Formado numa plenária no Fórum Social Mundial de 2005 e inspirado em manifestações nos anos anteriores em Salvador e Florianópolis, o movimento luta contra o abusivo aumento das passagens e propõe o transporte público e gratuito. Os levantes massivos em 2013, levando uma multidão nunca vista em muitos anos no país, foram resultado de 8 anos de intensa formação de base e atos de rua feitos pelo MPL.
Chamou a atenção de muitas pessoas, pouco familiarizadas com esta forma de organização, a ausência de lideranças e direção, característica da maioria das manifestações que conhecemos. Não havia um corpo burocrático em cima de um carro de som ditando os rumos e o descontrole em relação à radicalização é assumido pelo próprio MPL. O que não quer dizer que o MPL não possua responsáveis pelo transcorrer dos fatos e pela negociação com as autoridades.
Pois bem.. o movimento cresceu assustadoramente, conseguiu seu objetivo imediato (o cancelamento do aumento) e surpreendeu o poder e a imprensa. Incentivados pela estratégia oportunista da mídia e dos grupos de direita (que perceberam a força do movimento e resolveram apoiá-lo, desvirtuando suas pautas), mas também confirmando um senso-comum já existente, as ruas tornaram-se também lugar para manifestações de cunho nacionalista e conservador. Se antes a palavra de ordem “não são só 20 centavos” tinha caráter progressista ao reivindicar inicialmente pautas como os problemas dos grandes eventos, torna-se, posteriormente, bandeira conservadora. Abre espaço para as um cem número de reivindicações que atacam o poder personificado em indivíduos, mas não questionam nosso sistema político e econômico. De maneira correta, o MPL insistiu na centralidade de sua pauta, encerrou a chamada aos atos depois da vitória e criticou veementemente o avanço conservador e a repressão impingida aos partidos de esquerda por manifestantes que lhes agrediram e baixaram as suas bandeiras.
Este é um momento histórico único, que nos traz dezenas de perguntas. Inicialmente, podemos tentar entender quem são os jovens que estão nas ruas e seu caráter conservador e progressista. É importante não cair no reducionismo arrogante ao acreditar se tratar de uma mera turba fascista. Aprendemos na escola a cantar o hino e jurar a nossa bandeira, da mesma forma que não aprendemos a pensar a corrupção (outra bandeira predominante pós-pauta do passe-livre) como algo sistêmico. O abandono de um amplo trabalho de base por parte dos movimentos sociais, sindicais e estudantis tem sua dose de culpa nisso e é inevitável perceber que o orgulho nacionalista e a luta “contra a corrupção” é a referência maior em termos de atuação política no senso-comum dos brasileiros.
Ao mesmo tempo, poderíamos nos questionar se um movimento sem essa horizontalidade e liberdade poderia permitir que tantos jovens se sentissem à vontade de tomar as ruas. Falamos de uma geração que já cresceu com a internet e preza pela contestação à autoridade e ao poder. Ao mesmo tempo, os jovens da periferia querem dar o troco na polícia e em qualquer prédio ou instituição que verem pela frente. Eles são contra todos, pois a vida os fez assim
Poder Popular
Mas poderíamos entender estas manifestações como um instante histórico de “virada”. Seria muito romântico acreditar que as formas de organização horizontal como existem hoje já dão conta de criar um ambiente para a revolução. O horizonte atual é a superação das dificuldades na organização e da apropriação conservadora. O mais difícil é conseguir fazer isso sem cair nos riscos do retorno ao burocratismo, dirigismo e à necessidade de uma vanguarda iluminadora de consciências. Os movimentos sindicais, sociais, estudantis, os partidos políticos e a esquerda como um todo devem fazer sua auto-crítica e perceber por que se afastaram tanto das massas e têm cada vez dialogado menos com elas. Assim como os movimentos horizontais devem construir formas de organização mais efetivas e coesas, se pretendem de fato derrubar o poder e o capitalismo. Como conseguir que o caos produzido pelo estágio conturbado e ascenso das massas construa um novo mundo? Esse desafio é nosso.
O diferente nas lutas atuais é o questionamento ao poder em todas as suas formas, aliado à luta anticapitalista. Dentro disso, é hora de construir o poder popular a partir das bases, algo já defendido por muitos movimentos sociais do Brasil. Conquistas sociais pontuais são importantes e não podemos negar essas reivindicações nas ruas e nos espaços institucionais. Recusar isso é um ato egoísta em relação a todos os que sofrem nossas mazelas e não têm tempo de esperar. Mas a importância destes movimentos deve ir rumo ao reconhecimento dos limites na democracia representativa. Os anseios populares sempre pararão numa decisão do poder que, mesmo atendendo eventualmente alguma demanda, será o responsável pela manutenção da ordem estabelecida.
Ao andar pelas ruas de São Paulo na segunda-feira, maior ato do MPL (mais de 100 mil pessoas) eu e dois amigos ouvíamos as notícias de todo o país em levante. Eu estava filmando e a cena mais marcante foi a entrada num bar, onde o televisor registrava a ocupação do Congresso Nacional. Naquele momento não sabíamos ainda se tratar apenas da conquista da parte externa do prédio e nossa desinformação colaborou para o sentimento de que estávamos vivendo uma revolução. Mas na nossa conversa concluímos que o exemplo trazido por aquele dia trazia a força do povo e a mostra de que é possível chegar ao poder popular. Basta agora repensar nossas organizações, partir para a base, com formação política, debates, educação popular, mídias independentes, assembleias populares, manifestações, treinamento tático para as ruas e outras iniciativas. Alguns movimentos sociais já compreenderam isso e estão topando aproveitar esse momento histórico. As estratégias são muitas, mas o horizonte nunca pareceu tão claro e possível: a luta por uma sociedade livre, popular e socialista.
Gabriel de Barcelos
(com colaborações de Maisa Calazans, em conversas de bar)