Arquivo do mês: junho 2013

Horizontalidades, verticalidades e o poder popular: horizontes possíveis

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congresso

Vamos à história…

Em entrevista para o Roda-Viva, uma das representantes do MPL citou a importância do movimento altermundialista (ou “resistência global”, nas palavras de Naomi Klein) como influência para o grupo.  No fim dos anos 90, multidões tomaram as ruas de cidades em todo o mundo, protestando contra os organismos responsáveis pela política da globalização, seu livre comércio e ingerência nos países pobres. Conseguiram grandes feitos como em Seattle, em 1999, impedindo estrategicamente a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio). O movimento colocou em pauta a crítica à globalização destruidora (“globaritarismo”, segundo Milton Santos) e ao capitalismo, além de marcar novas formas de manifestação horizontalizadas, auto-organizadas e com grande uso das chamadas novas tecnologias. Esse foi o chamado movimento altermundialista, alterglobalização ou de resistência global. Mas essa história começa antes, em 1994, no levante zapatista em Chiapas…

Naquele ano vivíamos o recente fim da União Soviética e imperava o discurso do fim da história (do texto homônimo de Francis Fukuyama). O neoliberalismo se auto-proclamava como a vitória da liberdade e da democracia. A vitória, para eles, era a superação do modelo autoritário, restritivo à liberdade, na União Soviética. Em 94 um grupo de origem indígena se levantava em Chiapas e construía um território livre zapatista. O levante foi resultado de anos de trocas entre militantes de esquerda com experiência teórica e guerrilheira e os grupos originários, com suas formas de organização popular e cultura ancestral. Essa construção continuou após 94, num legítimo e conturbado processo do poder popular. (O Zapatismo também influenciou o MPL)

Uma das coisas mais interessantes no Zapatismo é a forma como ele tenta resolver a narrativa maniqueísta “democracia liberal X ditadura”. O movimento denuncia a falsa liberdade do neoliberalismo, sistema baseado em fortes mecanismos de repressão local e global e intensificador das desigualdades em todo mundo. Mas também nega as estruturas burocráticas, verticais e autoritárias da lógica stalinista. Esse fato influenciaria radicalmente as estratégias de grupos organizados. Forma-se, então, uma cadeia mutuamente influenciada de movimentos e levantes na virada do milênio: inicialmente o já citado altermundialista, mas também o Fórum Social Mundial, os Occupy, os indignados na Europa, o Anonymous, o Wikileaks e em menor medida, a Primavera Árabe.

Passe-Livre

No Brasil, um dos grandes herdeiros destas propostas políticas é o Movimento Passe-Livre. Formado numa plenária no Fórum Social Mundial de 2005 e inspirado em manifestações nos anos anteriores em Salvador e Florianópolis, o movimento luta contra o abusivo aumento das passagens e propõe o transporte público e gratuito. Os levantes massivos em 2013, levando uma multidão nunca vista em muitos anos no país, foram resultado de 8 anos de intensa formação de base e atos de rua feitos pelo MPL.

Chamou a atenção de muitas pessoas, pouco familiarizadas com esta forma de organização, a ausência de lideranças e direção, característica da maioria das manifestações que conhecemos. Não havia um corpo burocrático em cima de um carro de som ditando os rumos e o descontrole em relação à radicalização é assumido pelo próprio MPL. O que não quer dizer que o MPL não possua responsáveis pelo transcorrer dos fatos e pela negociação com as autoridades.

Pois bem.. o movimento cresceu assustadoramente, conseguiu seu objetivo imediato (o cancelamento do aumento) e surpreendeu o poder e a imprensa. Incentivados pela estratégia oportunista da mídia  e dos grupos de direita (que perceberam a força do movimento e resolveram apoiá-lo, desvirtuando suas pautas), mas também confirmando um senso-comum já existente, as ruas tornaram-se também lugar para manifestações de cunho nacionalista e conservador. Se antes a palavra de ordem “não são só 20 centavos” tinha caráter progressista ao reivindicar inicialmente pautas como os problemas dos grandes eventos, torna-se, posteriormente, bandeira conservadora. Abre espaço para as um cem número de reivindicações que atacam o poder personificado em indivíduos, mas não questionam nosso sistema político e econômico. De maneira correta, o MPL insistiu na centralidade de sua pauta, encerrou a chamada aos atos depois da vitória e criticou veementemente o avanço conservador e a repressão impingida aos partidos de esquerda por manifestantes que lhes agrediram e baixaram as suas bandeiras.

Este é um momento histórico único, que nos traz dezenas de perguntas. Inicialmente, podemos tentar entender quem são os jovens que estão nas ruas e seu caráter conservador e progressista. É importante não cair no reducionismo arrogante ao acreditar se tratar de uma mera turba fascista. Aprendemos na escola a cantar o hino e jurar a nossa bandeira, da mesma forma que não aprendemos a pensar a corrupção (outra bandeira predominante pós-pauta do passe-livre) como algo sistêmico. O  abandono de um amplo trabalho de base por parte dos movimentos sociais, sindicais e estudantis tem sua dose de culpa nisso e é inevitável perceber que o orgulho nacionalista e a luta “contra a corrupção” é a referência  maior em termos de atuação política no senso-comum dos brasileiros.

Ao mesmo tempo, poderíamos nos questionar se um movimento sem essa horizontalidade e liberdade poderia permitir que tantos jovens se sentissem à vontade de tomar as ruas. Falamos de uma geração que já cresceu com a internet e preza pela contestação à autoridade e ao poder. Ao mesmo tempo, os jovens da periferia querem dar o troco na polícia e em qualquer prédio ou instituição que verem pela frente. Eles são contra todos, pois a vida os fez assim

Poder Popular

Mas poderíamos entender estas manifestações como um instante histórico de “virada”. Seria muito romântico acreditar que as formas de organização horizontal como existem hoje já dão conta de criar um ambiente para a revolução. O horizonte atual é a superação das dificuldades na organização e da apropriação conservadora. O mais difícil é conseguir fazer isso sem cair nos riscos do retorno ao burocratismo, dirigismo e à necessidade de uma vanguarda iluminadora de consciências. Os movimentos sindicais, sociais, estudantis, os partidos políticos e a esquerda como um todo devem fazer sua auto-crítica e perceber por que se afastaram tanto das massas e têm cada vez dialogado menos com elas. Assim como os movimentos horizontais devem construir formas de organização mais efetivas e coesas, se pretendem de fato derrubar o poder e o capitalismo. Como conseguir que o caos produzido pelo estágio conturbado e ascenso das massas construa um novo mundo? Esse desafio é nosso.

O diferente nas lutas atuais é o questionamento ao poder em todas as suas formas, aliado à luta anticapitalista. Dentro disso, é hora de construir o poder popular a partir das bases, algo já defendido por muitos movimentos sociais do Brasil. Conquistas sociais pontuais são importantes e não podemos negar essas reivindicações nas ruas e nos espaços institucionais. Recusar isso é um ato egoísta em relação a todos os que sofrem nossas mazelas e não têm tempo de esperar. Mas a importância destes movimentos deve ir rumo ao reconhecimento dos limites na democracia representativa. Os anseios populares sempre pararão numa decisão do poder que, mesmo atendendo eventualmente alguma demanda, será o responsável pela manutenção da ordem estabelecida.

Ao andar pelas ruas de São Paulo na segunda-feira, maior ato do MPL (mais de 100 mil pessoas) eu e dois amigos ouvíamos as notícias de todo o país em levante. Eu estava filmando e a cena mais marcante foi a entrada num bar, onde o televisor registrava a ocupação do Congresso Nacional. Naquele momento não sabíamos ainda se tratar apenas da conquista da parte externa do prédio e nossa desinformação colaborou para o sentimento de que estávamos vivendo uma revolução. Mas na nossa conversa concluímos que o exemplo trazido por aquele dia trazia a força do povo e a mostra de que é possível chegar ao poder popular. Basta agora repensar nossas organizações, partir para a base, com formação política, debates, educação popular, mídias independentes, assembleias populares, manifestações, treinamento tático para as ruas e outras iniciativas. Alguns movimentos sociais já compreenderam isso e estão topando aproveitar esse momento histórico. As estratégias são muitas, mas o horizonte nunca pareceu tão claro e possível: a luta por uma sociedade livre, popular e socialista.

Gabriel de Barcelos

(com colaborações de Maisa Calazans, em conversas de bar)

Fragmentos de um processo

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Algumas postagens que publiquei no Facebook, ao longo do dia, depois da quinta manifestação contra o aumento da passagem, em São Paulo, que reuniu 100 mil pessoas.

Chegando agora das ruas de São Paulo e acompanhando tudo o que aconteceu hoje, não sei o que pensar, o que dizer.. talvez apenas acorde muito tempo depois.. apenas tenho a certeza: sou protagonista da história, assim como você.

Criar, criar, poder popular!

*

Impressionante como o inimigo consegue vencer fácil! A direita e a mídia perceberam que não podem ir contra a ira das massa e tentam, de forma oportunista, instrumentalizar o movimento. A resposta de parte da esquerda é cair nesse jogo e deslegitimar o movimento mais impressionante que já apareceu no país nas últimas décadas. Como num cartaz que eu vi na Paulista ontem: “Os derrotistas serão derrotados”

*

Não há culpa nenhuma pela aprovação provisória da tal “cura gay” enquanto no dia anterior as ruas estavam tomadas. Enquanto crescemos, temos que nos espalhar e nos organizar. Se muitos apontam que devem-se fazer lutas mais “focadas”, temos que levar em conta a imensidade de bandeiras contra a opressão: indígenas e negros da periferia assassinados, grandes eventos destruidores, além da ascensão da homofobia e do machismo, etc.. Enquanto Não podemos negar nenhuma delas. A partir da rua deve vir a luta popular. Enquanto os protestos aconteciam, provavelmente também um índio estava sendo espancado e um jovem estava sendo morto na periferia.. A opressão está em todo lugar.
Agora um dos fronts é impedir a aprovação dessa lei absurda contra a diversidade sexual.. E assim seguimos em frente..

*

Pela unidade da esquerda

Percebo agora um conflito muito semelhante ao que acontece sempre em muitos movimentos. De um lado independentes, defensores de construções horizontais, autonomia e críticos aos partidos. Do outro, os partidos, que defendem uma presença maior de programas claros, direção e vanguarda. Não concordo com a repressão às bandeiras, acho muito negativo. Mas é importante ressaltar que muitos militantes dos partidos também “abaixam bandeiras” de vozes independentes todos os dias, através da burocratização e manobras em sindicatos, centros acadêmicos, greves, ocupações, etc.. Esse ódio não surge do nada.

Assumidamente, como opção política, defendo a construção do poder popular e formas de organização que vão além de partidos. Mas creio que esse é o momento de unidade e aceitar o diferente. Não podemos deixar a instrumentalização por parte da direita e nos unir pelo o que temos em comum.

Como dizia Drummond:

“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

*

O mundo não é um centro acadêmico de faculdade onde todo mundo mundo cita Marx de cor. A rua é da diversidade. Se quisermos um dia transformar alguma coisa, temos que encarar o mundo tal como ele é. Temos que fazer um debate de ideias, propondo e construindo a chama revolucionária a partir da rua.

A Copa do Mundo é nossa

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maracana

Farão ainda mais barulho

quando derem o apito inicial

O estádio branqueado

ganhará as cores proibidas

índios e comunidades expulsas

serão penetras da festa particular

invadir sua praia,

bagunçar seu coreto,

jogar a merda num tornado inevitável

a inversão voltará como arma

e no apito final

não fuja pro vestiário

nem peça escolta à polícia

pois invadir o gramado

será a única solução

 

Gabriel de Barcelos

Fotografia- Ricardo Azoury

Livre peço

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Passemos juntos em todas as casas

Passeemos juntos em todas as praças

Passarinhemos junto a todas as massas

 

Passe livre agora

abrindo janelas

Passa a vida, bonde

quebrando cancela

Passo-a-passo na rua

herdamos a terra

 

Eles, passarão

nós, primavera

 

Gabriel de Barcelos

 

(Poema escrito no improviso, durante uma moda de viola no Festival 10 anos da Fábrica Ocupada Flaskô. Em homenagem a todos os trabalhadores da fábrica, a Mario Quintana e ao Movimento Passe-Livre)

As ruas podem reacender a luta popular e estragar a foto de um Brasil-espetáculo

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Passe Livre 2

O que as manifestações dos atingidos pelos grandes eventos, o massacre indígena, o extermínio da população negra e a fúria das ruas no Movimento Passe-Livre têm em comum? Todos esses exemplos revelam um Brasil em conflito, violento e desigual, que o poder do Estado e do Capital insiste em esconder (ou eliminar) em seu espetáculo visual de perfeição e progresso. Dentro disso, vou tentar fazer algumas reflexões sobre o movimento Passe-Livre e seu potencial para provocar discussões e propostas, impulsionar as lutas sociais e tornar visíveis as nossas contradições.

Passe-Livre/tarifa zero

A primeira e mais evidente conquista do movimento é colocar em debate a questão do transporte público. Uma pauta não surge do vácuo: ela é fruto da mobilização popular e de fatos políticos que a provocam. A discussão está em todo lugar, desde veículos de esquerda, passando pelas redes sociais até a grande imprensa. Hoje à noite mesmo me surpreendeu um debate sobre o tema na Globo News. E, melhor ainda, levanta-se a bola (como eu nunca havia presenciado) da tarifa zero como possibilidade plausível para o transporte. Até mesmo Haddad teve que se pronunciar sobre o assunto.

O transporte realmente público, garantindo a mobilidade urbana para o trabalho, cultura, lazer e satisfação da arte do encontro deve ser visto como direito. Talvez poderíamos realmente estar próximos de realizar o tão falado “direito de ir e vir” bradado pela imprensa quando uma manifestação para a cidade.

Mas, sobre o tema, prefiro não me alongar mais, pois três textos se debruçam bem melhor sobre isso: o de Thais Carrança, sobre a trajetória da tarifa zero no PT, o de Célio Turino, aprofundando e embasando a ideia e o do próprio MPL.

passe livre

Organização popular

Em Juiz de Fora-MG, durante o ano de 2006,  participei bastante do movimento contra o aumento da passagem e tenho acompanhado o MPL desde então. Posso dizer que essa experiência influenciou bastante a minha formação política. E uma coisa que pode ser vista facilmente em qualquer manifestação do passe-livre é a heterogeneidade de tendências política dos militantes e a grande participação de empolgados jovens independentes, inclusive do ensino médio. Eles fornecem muita energia para o movimento e alguns deles preferem ações mais radicalizadas. Isso é perfeitamente compreensível, visto que eles percebem, ali, a possibilidade de romper com o silêncio e agir junto à força das ruas. Da mesma forma, eles não se familiarizam com a representação horizontal dentro do movimento e se recusam ser massas de manobra de algumas entidades burocratizadas da esquerda (mais sobre isso pode ser visto no documentário Revolta do Buzu, de Carlos Pronzato, sobre os primórdios do Movimento Passe-Livre, em Salvador).

O MPL, que  define-se como “autônomo, horizontal, independente e apartidário”, é um dos poucos movimentos a levar grandes massas para a rua, de forma persistente, em atos de verdadeiro enfrentamento. Felizmente, ele não cai no sectarismo e consegue congregar diferentes grupos políticos, para somar numa luta percebida por todas e todos como importante. Mas é gritante a diferença em relação à mobilização de ações como essa do MPL em contraste com  outras iniciativas de entidades e partidos de esquerda, seja de situação ou oposição. Presos a seus congressos, assembleias internas e agendas de luta muito bem definidas, acabam pouco agregando e caindo no erro de ser um fim em si mesmos.

Há de se ressaltar que grandes mobilizações como essas de São Paulo funcionam geralmente como ondas,  levantando multidões, mas terminando com grande parte voltando para casa. Neste sentido, as entidades de esquerda geralmente fazem o papel de continuar no trabalho no dia-a-dia, mantendo a chama da mobilização. Isso se dá, principalmente, devido ao apoio institucional dado aos militantes e às referências mais sólidas de quem participa de uma organização como essa. Infelizmente, a consequência muitas vezes é a cobra acabar mordendo o próprio rabo, como citei acima.

Dentro de um quadro onde grande parte da esquerda foi cooptada pelo governismo do PT e a oposição de esquerda tem grande dificuldade em construir um trabalho de formação de base massivo que saia de seus círculos, precisamos nos reencontrar dentro deste impasse. A resposta para mim só pode vir das ruas.

Brasil como espetáculo

Me desculpem se pareço romântico, mas acredito que as manifestações do passe-livre são uma oportunidade histórica. Vários dos textos que andam circulando ressaltam que a manifestação é muito maior do que a reivindicação pelo aumento de 20 centavos na passagem. Da mesma forma, pareceria ridículo dizer hoje que Maio de 68 foi uma manifestação por lutas pontuais na Sorbonne ou que a revolta na Turquia é apenas contra a derrubada de uma praça pública (ainda que tenha sido o gatilho inicial).

É interessante notar que o MPL se aproximou do Comitê Popular da Copa do Mundo e a luta dos atingidos pelos eventos. Assim como eles, vários grupos como indígenas e os jovens negros das periferia assassinados vêm sofrendo as consequências de um projeto de nação espetacular e excludente. A partir da fúria das ruas pode ser reorganizada a base da luta popular para além de uma onda. Isso depende de um projeto político permanente e a necessidade de priorizar o poder popular em detrimento de formações burocratizadas e verticais. Só assim poderemos romper com a tentativa do poder constituído de mascarar toda a violência e conflito de nossa existência em nome de uma imagem de país.

A luta do passe-livre é a revelação do conflito que ninguém quer ver, do problema jogado de baixo de um tapete. Projetos como Belo Monte, a expansão do latifúndio rumo às reservas indígenas, os planos de “revitalização” higienista nas grandes cidades,  a Copa e as Olimpíadas não são apenas ações da ordem estabelecida, mas da construção da imagem dessa mesma ordem. Nas palavras de Walter Benjamin, é a “estetização da política”, nas de Guy Debord, é o “espetáculo”, ou a  “fantasmagoria”. Nesta imagem não entram índios, sem-terras, sem-tetos, moradores em situação de rua, camelôs, catadores, homossexuais, nem os conflitos de rua.. No espetáculo do Brasil-nação todos concordam com tudo, os jovens na periferia são invisíveis e não há problemas no transporte. Estragar essa foto tão bem montada pelo Estado e o Capital é um ato político necessário, que poderá ser muito bem operado por todos aqueles que não foram convidados para a grande festa na área VIP. Basta organização, mobilização e vontade de lutar.

Nota 1: Antes de escrever esse texto, recebo a notícia de que minha amiga presa num dos atos foi solta. Não poderia terminar sem antes parabenizar a todo mundo que está nas ruas enfrentando balas de borracha e prisões. São almas repletas de coragem e dignidade. É o tipo de gente que veio nessa vida para ser protagonista da história e não viver a vida vegetativa exigida pela grande imprensa.

Nota 2: Os jovens vem se organizando bem para continuar nas ruas, minimizar os efeitos do gás e persistir. Torna-se cada vez mais urgente em todos os nossos movimentos a formação para táticas de ações de rua. Para isso, uma das coisas que recomendo é o filme Essa é a cara da democracia, retratando as bem sucedidas ações em Seattle, que barraram a reunião da Organização Mundial do Comércio em 1999.

Fotografias: MPL

Gabriel de Barcelos 

Todas as câmeras, todas as telas: por que a política de fomento ao audiovisual deve mudar?

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cinescadao_post

No ano de 1990 o presidente Collor extinguiu a Embrafilme, empresa estatal financiadora do cinema brasileiro desde 1969. A medida fez parte do Plano Nacional de Desestatização, dentro de um período histórico de desmontes públicos, recessão e corrupção. O início dos anos 90 foi marcado pela distopia da ideologia do fim da história, ascensão do discurso único da globalização e do neoliberalismo. Em sintonia com este clima, o  cinema brasileiro viveu a sua Idade das Trevas, com um escasso número de filmes, provocando a sua aparente morte.

Em 1995, o surpreendente Carlota Joaquina, a princesa do Brazil, de Carla Camurati marcou o início do chamado Cinema da Retomada, dentro de um conjunto de filmes que rompeu o hiato provocado pela Era Collor. Os anos 90 e 2000 foram, então, um período de reconstrução, com um rigoroso investimento na imagem do nosso cinema, alguns grandes sucessos de bilheteria e premiações internacionais. Grande parte destes filmes (a partir dos anos 2000) foram financiados pela Ancine- Agência Nacional do Cinema, através de leis de renúncia fiscal (como a Lei Rouanet) ou de fomento direto, além de outras políticas estaduais e municipais.

Hoje podemos dizer que contamos com um respeitável cinema. Mas, entre os problemas apontados por realizadores, público e crítica,  está a grande assimetria entre uma extensa realização de filmes e uma péssima rede de distribuição e exibição. Ou seja: a maioria dos filmes não é vista. As reclamações sobre o tema já se tornaram quase um mantra, apesar de pouca coisa ter sido feita a respeito. Essa situação não  mudará  enquanto a distribuição e a exibição continuarem a ser etapas separadas da realização, entregues à sorte e à selva das chamadas majors. Para mim, um dos grandes problemas que nos impede de seguir adiante é esquizofrenia de ver o  filme como um negócio, mesmo sendo financiado de forma estatal. Por isso é urgente  começar a olhar o cinema da forma como ele se caraceriza em seu financiamento: como parte do direito à cultura previsto na Constituição Federal. (“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.) Da mesma, forma deve-se privilegiar formas de fomento direto e não leis de renúncia como a Rouanet, que passa, necessariamente, pelo crivo do interesse privado das empresas.

É interessante notar que os anos 2000 viram a  consolidação de um cenário audiovisual em processo, com tecnologias mais acessíveis e o crescimento de diferentes formas de produção independente e organização dos grupos.  Formam-se coletivos, oficinas, desenvolvem-se artistas do vídeo, documentaristas, experimentadores, videoativistas, a produção (ou a atenção ao que existia) se descentraliza geograficamente no espaço do país e da cidade. As discussões e possibilidades de poder fazer cinema empolgam uma geração de diferentes realizadores em todo o país. Além disso, o audiovisual também parte do protagonismo de grupos  como os indígenas,  moradores de periferias urbanas e integrantes de movimentos sociais e culturais.

Muitas das minhas inquietações em relação ao descompasso das políticas para o cinema foram percebidas através da convivência com um outro universo de trocas e  espíritos criativos em espaços como a Mostra de Cinema de Tiradentes, os circuitos do Vídeo Popular no Estado de São Paulo, cineclubes e o Museu da Imagem e do Som em Campinas. Citei esses casos apenas como experiência pessoal, mas percebo a difusão cinematográfica bem além das salas comerciais, sendo difícil até mesmo privilegiar alguns como exemplo. Percebo que o cinema está vivo em exibições e debates de grupos que estão repensando a linguagem cinematográfica, os processos de realização e estão refletindo sobre o nosso país. Infelizmente, as leis de fomento não perceberam estes processos. Ainda privilegia-se as salas de exibição comerciais, de preços caros. Os filmes de maior apelo mercadológico, (que não necessitariam do fomento) vão para as grandes redes, enquanto os demais ficam no restrito nicho dos cinemas alternativos mantidos por bancos. Temos, de um lado, filmes realizados com dinheiro público, que não são vistos e, do outro, a ebulição de cineclubes, festivais, pontos de exibição comunitária, centros culturais e outros espaços de difusão pública que não são participantes desta cadeia de financiamento.

Obviamente, não defendo o fim das salas comerciais, do incentivo a algumas grandes produções, além de muitos dos procedimentos já existentes. Não pretendo cair no erro de pensar a partir de uma tábula rasa, sem reconhecer a importância histórica dos fomentos existentes para a consolidação do nosso cinema. Contudo, as leis devem começar a contemplar também este grande movimento do audiovisual, além de democratizar o acesso a um amplo espectro de artistas envolvidos.

Embora estejam em campos diferentes, sendo necessárias as devidas ressalvas na comparação com o cinema, cito duas referências interessantes para pensar na modificação das leis de fomento: os  Pontos de Cultura, do Governo Federal e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro de São Paulo.  Não é  por acaso que ambos foram construídos a partir de demandas e ideias dos agentes culturais e da sociedade civil como um todo: entre seus diferenciais está o financiamento a processos continuados e horizontalizados no lugar de  produtos culturais acabados. Privilegia-se, também, a cultura que está nas ruas, no cotidiano, no trabalho mais orgânico dos artistas para além de uma visão de espetáculo/produto.  No audiovisual, um caso interessante é o DocTV, por conter alguns dos elementos importantes ausentes da maioria das políticas públicas para o setor, tais como a formação dos realizadores, a diversidade geográfica e a garantia de uma janela de exibição (na TV Pública, neste caso).

Quando falamos em audiovisual, devemos pensar como articular a formação (e pesquisa) dos grupos e autores, a realização dos filmes, a distribuição, exibição e a divulgação, permitindo uma visão total e processual. Para dissecar melhor essas ideias, farei algumas propostas livres. Não trata-se de um projeto, nem de uma análise mais bem acabada dos detalhes burocráticos, políticos e teóricos, mas alguns pontos para repensarmos as leis de fomento ao cinema. Entre os pontos, estão (atualizado com as sugestões do debate em Campinas):

– Garantia de espaços de discussão e formação técnica, estética e teórica dos grupos, além de permitir a pesquisa e preparação para a realização dos projetos fílmicos. Para isso, seria necessário o pagamento da equipe durante o tempo previsto no edital e o financiamento de equipamentos e outros materiais já no estágio incial.

– Realização de espaços abertos à comunidade para debate e formação, durante os projetos. Por exemplo: discussão pública sobre o tema estudado para uma produção, a socialização das pesquisas sobre linguagem através de cursos para as pessoas do entorno, etc..

– Previsão não apenas de roteiros, argumentos e projetos cinematográficos bem delimitados e fechados, como pedem os editais atuais,  mas também de ideias abertas, que são desenvolvidas no próprio processo, permitindo maior liberdade criativa.

– Caso for a escolha do grupo, prever a realização não só de uma obra, mas algumas dentro do período e do orçamento estabelecido no edital. Os processos iniciais de preparação dos grupos poderiam já envolver a realização de filmes, ou não.

– Para além da prática dos que já são realizadores, é importante a implementação de cursos e oficinas formadoras de novos profissionais, preferencialmente em locais de menor acesso ao audiovisual.

– Formação de uma rede de pontos de exibição pública a partir do cadastramento de cineclubes, centros culturais, escolas, faculdades, associações e outros espaços. Garantir um circuito de exibição público (gratuito) para todos os filmes que são contemplados com os editais.

– Fomento para importantes pontos de exibição pública, com auxílio nas projeções mais profissionais, melhoria no espaço físico, pagamento e capacitação das pessoas que se dedicam aos locais.

– Realização de festivais e mostras com as produções contempladas pelos editais públicos, além de outras produções de Campinas e da região.

– Projetos de formação de público, ações educativas de exibição e produção, etc..

– Apoio às videotecas comunitárias e públicas, com investimento, capacitação e manutenção material, tal qual nos pontos de exibição. Apoio a outras formas de catalogação e preservação de acervo de coletivos de exibição, distribuição e exibição.

– Garantia de um número suficiente de cópias de películas ou outros suportes para a exibição nos pontos públicos e nas salas comerciais, além de uma divulgação minimamente aceitável.

– Abertura de janelas para os filmes contemplados em programas de TV em canais públicos, educativos, comunitários e outros que serão criados com a TV digital. Além disso, a utilização de plataformas online, dispositivos móveis e a  possibilidade de distribuição e/ou venda a preços baixos de DVDs com os filmes.

– Contemplar realizações nas mais diferentes áreas do audiovisual, como programas de TV, webtv, CD-Rooms, filmes para internet, vídeo-arte, vídeo-instalação e outras.

– Diminuição da burocratização nas seleções, evitando a exclusão  daqueles grupos menos adaptados aos meandros de uma candidatura a um edital (numa relação injusta entre os grupos mais preparados), ou mesmo permitir que grupos sem CNPJ concorram (tal qual o Vai, programa municipal de SP)

*É importante ressaltar que estes vários pontos podem (e devem, em muitos casos) se completar. Como por exemplo: pesquisa, formação, debates, exibição e ações educativas.

Esta é apenas uma primeira reflexão sobre o tema, propondo pontos para possíveis discussões. Mais à frente tentarei entrar em mais detalhes sobre as leis de fomento existentes, além de citar filmes, grupos e realizadores que exemplificam uma nova etapa na produção audiovisual. Mais do que propor, gostaria de participar de uma ampla discussão sobre a revisão das políticas atuais e defendo, acima de tudo, a participação de sujeitos excluídos do debate público. Talvez, assim, possamos pensar num cinema  livre, independente de imposições comerciais e verdadeiramente democrático para os realizadores, exbidores e para quem assiste.

Gabriel de Barcelos

Foto: Projeto Cinescadão- Acervo Cinescadão (Jardim Peri Novo- São Paulo)

Nota: Apesar de algumas discordâncias em termos teóricos, recomendo muito o artigo Por um cinema pós-industrial, de Cezar Migliorin, que tem propostas e implicações práticas bem semelhantes e se vale bem mais de exemplos e referências bibliográficas.

Pela Lei do Peito Livre, Pelo nome social de todo transexual ou Como a Justiça entrou numa sinuca de bico

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Erro de português  (Oswald de Andrade)

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena! Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português

Indianara Siqueira, transexual e uma das organizadoras da Marcha das Vadias resolveu ficar sem camisa numa das marchas. Resultado: foi enquadrada por “ultraje público ao pudor”. Segundo seu depoimento, ela estava fazendo um protesto, junto com outras transexuais, chamado “Meus peitos, minha bandeira, meu direito”. Indianara, no entanto, aponta que a Justiça entrou num dilema: ” Se me condenar estará reconhecendo legalmente que socialmente eu sou mulher e o que vale é minha identidade de gênero e não o sexo declarado em meus documentos e isso então criará jurisprudência para todas xs pessoas trans serem respeitadxs pela sua identidade de gênero e não pelo sexo declarado ao nascer. Se reconhecer que sou homem como consta nos documentos estará me dando o direito de caminhar com os seios desnudos em qualquer lugar público onde homens assim o façam,mas também estará dizendo que homens e mulheres não são iguais em direito.”

Tal como teorizou Walter Benjamin, temos aqui uma imagem dialética, um instantâneo que contém em si todas as contradições. A Justiça, por ela própria, mostra que seus estranhos caminhos paradoxais podem revelar direitos para além das letras. Poderemos ter o reconhecimento da identidade de gênero e do nome social tão reivindicado por transexuais, o direito às mulheres andarem sem camisa (direitos iguais entre homens e mulheres), o arquivamento do processo ou, numa visão mais cética, uma decisão que não permita conquista nenhuma. Entre todas, prefiro a decisão que não prejudique Indianara, mas, querendo a Lei ou não, o debate já foi jogado no ar.

Num só protesto Indianara ousa questionar as regras estabelecidas, que não dão conta da liberdade total em relação aos nossos corpos e identidades. Não há avanços em termos de direitos quando apenas se obedece todas as normas. Para transformar e revolucionar, há de se ter uma postura de negação do que existe de injusto. A partir do vento da mudança, vindo das ruas, a Justiça precisa rever suas próprias contradições e, muitas vezes, tem que juntar os cacos da história e garantir direitos (me dê licensa de novo, Benjamin). A existência plena vem daqueles que transcendem o que foi programado e são motores dos movimentos de transformação e do rompimento.

Da mesma forma que os transexuais  têm o direito ao nome social, podemos falar que elas e todas as mulheres têm o mesmo direito dos homens de tirar suas camisas. Vivemos um país onde é considerado muito correto um homem usar um terno europeu no calor de quarenta graus, mas indigno uma moça desfilar belamente com seu shortinho pelas ruas. Há um imenso tabu com o seio feminino em todo mundo (com exceção das diferentes culturas onde as mulheres podem expô-los). Algumas publicações caem até no ridículo de apenas esconder os mamilos, deixando todo o resto à mostra (seriam apenas os mamilos polêmicos o tabu?).

Quando as mulheres reivindicam esse direito, os argumentos conservadores sempre caem em cima do que consideram ser uma exposição desnecessária ou mesmo justificam o estupro e os abusos baseados nesta suposta exposição. Pois bem, a Marcha das Vadias, movimento que nutro grande admiração, busca colocar em pauta estes elementos. Se alguém recomendou que as mulheres não andassem “feito vadias” para não serem estupradas, elas saem sem roupa, com roupa, do jeito que querem e ainda brincam e resignificam o próprio estereótipo “vadia”. As mulheres que saírem com os seios à mostra devem ter o mesmo direito que qualquer ser humano. Pode estar vestida da maneira que bem entender, o que não permite que nenhum homem abuse dela com palavras ou violência física. Paradigmas estão aí para serem quebrados e podemos repensar o que é e o que não é atentado ao pudor.

Por ser homem, não seria correto dizer o que as mulheres devem ou não fazer. Apenas apoiar seus atos de desobediência civil e outras formas de luta. Mas me contentaria com o fato delas terem os mesmos direitos que eu, que eventualmente exponho minhas graciosas banhas quando está calor.

Assim como alguns homens têm usado saias para criticar as imposições de gênero, as mulheres podem sair às ruas sem camisa. Gosto muito do espírito de liberdade e contestação vindo dessas manifestações. Relativizam estereótipos para afirmar identidades e liberdades de ser o que quiser.  Espero ainda viver num lugar onde todo mundo tenha direito às suas escolhas de gênero, orientação sexual e, é claro, ao próprio corpo.

Gabriel de Barcelos

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100 Anos do Cinema do Povo e do Cinema Militante

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Em 2013 completam-se 100 anos da formação o grupo francês Cinema do Povo. Formado majoritariamente por anarquistas, pode ser considerado o marco inicial do cinema militante. Embora o tema da política esteja desde o início da arte cinematográfica, o Cinema do Povo foi o primeiro grupo organizado, vinculado às lutas sociais, que tentou produzir filmes próprios. Este tipo de cinema já teve vários nomes: cinema político, cinema militante (popularizado, principalmente, nos anos 60), chegando até ao cinema de quebrada, vídeo popular e videoativismo. Muita coisa aconteceu a partir daquele grupo que se uniu em 1913 e é importante lembrarmos dessa história. Para isso, vou compartilhar um trecho das minhas pesquisas, além de 3 vídeos do Cinema do Povo

Nas periferias operárias do início do século XX abraça-se o cinema. E a massa segregada, formada pelo desenvolvimento das cidades e do parque fabril é o sujeito coletivo que define o cinema e as imagens como referência na construção simbólica da modernidade e da cidade. Para compreender este processo, é importante conhecer como se deu o reconhecimento dos sujeitos sociais oprimidos no período do século XIX, dentro das relações econômicas e as implicações culturais e de visibilidade deste processo. Ali marca-se o surgimento da chamada “consciência de classe” no proletariado. E é quando o operário entra em cena que modificam-se os processos de visibilidade. Esta consciência é  fruto das transformações do capitalismo e dos levantes operários do século XIX. Para o historiador Eric Hobsbawn, “(…) o movimento operário proporcionou uma resposta ao grito do homem pobre. Ela não deve ser confundida com a mera reação coletiva contra o sofrimento intolerável.

(…) O verdadeiro novo no movimento operário do princípio do século XIX era a consciência de classe e a ambição de classe. Os “pobres não mais se defrontavam com os “ricos”. Uma classe específica, a classe operária, trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões capitalistas. A Revolução Francesa deu confiança a esta nova classe; a revolução industrial provocou nela uma necessidade de mobilização permanente. Uma existência decente não podia ser obtida por meio de um protesto ocasional que servisse para restabelecer a estabilidade da sociedade perturbada temporariamente. Era necessária uma eterna vigilância, organização e atividade do “movimento”- o sindicato, a sociedade cooperativa ou mútua, instituições trabalhistas, jornais, agitação.”[1]

A classe trabalhadora sabia qual era o seu lugar no sistema, buscava ações de enfrentamento e visibilidade e propunha um outro tipo de sociedade: “seria cooperativa e não competitiva, coletivista e não individualista. Seria ‘socialista’[2] (…)”

Para Lukács, na presença da consciência de classe há uma contribuição dentro de uma luta pelo visível. Segundo ele, “é somente com a entrada em cena do proletariado que o conhecimento da realidade social encontra seu acabamento: com o ponto de vista de classe do proletariado, um ponto é descoberto a partir do qual a totalidade pode ser visível.[3]

O nascimento das imagens cinematográficas, já no fim do século XIX, não pode ser pensado fora destas mudanças culturais, econômicas e urbanísticas do período. A cultura moderna foi cinematográfica antes mesmo do cinema existir e seu aparecimento foi “algo inevitável e redundante”, como apontam Schwartz e Charney[4]. Para estes autores, a cidade e a “circulação de corpos e mercadorias” permitiram a formação da modernidade. Uma quantidade de objetos, velocidades e opções para atenção e o consumo, além da diversidade de pessoas. Temos agora uma centralidade do corpo, objeto de “visão, atenção e estimulação”. Essencial também é compreender a importância no espaço urbano de um “público, multidão, ou audiência de massa”, onde a recepção cinematográfica constrói-se coletivamente. O entretenimento das massas tem relação com a nova configuração geográfica periférica da classe trabalhadora, vinda com as reformas urbanas. Circos, feiras, music halls e outros tipos de shows atraíam a população pobre nas periferias operárias na virada do século XIX para o século XX. As atrações era comediantes, aberrações, artistas circenses e outros. Junto a isso, também estavam eventualmente os aparelhos precursores do cinema, como a lanterna mágica e fenascópio. Os primeiros filmes do kinetoscópio, aparelho individual de exibição cinematográfica criado por Edison, circulavam em ambientes considerados vulgares para a ordem estabelecida, onde o álcool, o sexo eram constantes.[5]

Mas a experiência da sala coletiva do cinematógrafo, a partir de 1895, com o cinematógrafo dos Lumiere, predominará. O cinematógrafo se torna uma diversão barata e muito popular em bairros operários, lado a lado com outras atrações presentes nos ambientes de entretenimento. O cinema gera muito preconceito e pouco interesse nas elites, que preferiam freqüentar lugares mais conceituados como óperas e balés. Duas décadas depois, torna-se algo considerado “sério” para as classes mais altas, com a modificação das temáticas e a preocupação com um chamado “cinema de arte” .

Já na primeira exibição do cinematógrafo dos Lumière está presente a saída dos trabalhadores da fábrica, em seu ritmo cotidiano, seus corpos e movimentos. Ali está a imagem que caracteriza os centros urbanos industriais. Em meio a tantas discussões atuais da crítica e teoria de cinema sobre classe social e representação, é interessante observar que as primeiras imagens foram justamente de dois industriais (os Lumière) registrando seus funcionários. Contudo, as diversões de massa como o cinema eram vistas como anestésicos para as lutas sociais. O cinema, que a partir dos anos 10 alcança grande profusão em várias partes do mundo e ganha agora sua autonomia nas salas de exibição próprias, é apontado como um grande inimigo. Como mostra Machado[6] este cinema não refletia as aspirações da classe operária mais politizada e organizada da sociedade, que o considerava mais um ópio do povo. Uma das poucos exceções é Le cuirassé Potemkin, realizado por Ferdinand Zecca em 1905, no mesmo ano do motim no encouraçado que tematizaria o clássico de Einsenstein duas décadas depois.

O autor ressalta, no entanto, que os grupos políticos eram conservadores do ponto de vista cultural e reproduziam em suas artes as mesmas práticas das classes dirigentes. Seis anos anos, em 1899, Meliés fazia um dos primeiros filmes de tema político: L’affair Dreiffus, de Meliés (veja, abaixo, o vídeo). O caso é contemporâneo ao filme e marcou o nascimento do próprio conceito de intelectual. Trata-se da injusta condenação por espionagem do oficial Dreyfus pelos tribunais franceses, com claras motivações antissemitas. O caso veio mais fortemente ao debate público após uma série de cartas enviadas pelo escritor Émile Zola aos jornais, denunciando a injustiça. Num período onde interesses de Estado estavam envolvidos, a pendenga durou alguns anos até a total reabilitação do oficial. A história foi determinante na construção da figura deste chamado intelectual, alguém que usa o espaço público a favor de algo que considera verdadeiro e justo, através de um engajamento necessário. [7]  

Cinema do Povo

Mas foi em 1913 que se formaria o primeiro grupo organizado de um cinema operário. No I Congresso da Federação Comunista Anarquista Revolucionária, em Paris, um grupo de militantes franceses se reuniu num comitê e começou a debater o cinema. Se algumas pessoas ainda viam os jornais e os livros como meios privilegiados para a educação, a potência das imagens cinematográficas perante o povo não podia ser ignorada pela maioria da militância. Observam que a “propaganda por meio da imagem é a propaganda por excelência, a propaganda que impacta os cérebros e corações.” [8] Eles citam as funestas contribuições das produções comerciais na formação do imaginário popular, “produtos jogados aos montes todas as noites nos cinemas das periferias”[9]. Muitos anarquistas avaliavam criticamente a abordagem preconceituosa do povo e dos movimentos populares. Os líderes sindicalistas, por exemplo, eram mostrados como vagabundos e bêbados. [8] Mas, para eles, não adiantava apenas reclamar. A conclusão apontava para necessidade da produção própria, fazer o próprio cinema. “Criar, para e por nós filmes e defender nossas idéias de justiça social por meio da imagem”.

A decisão foi construir um cinema impessoal, realizado de forma cooperativa.[9] Já havia um histórico, dentro do movimento de trabalhadores, de tentar registrar e divulgar as imagens das lutas sociais. Mas, infelizmente, ao se associar a grandes produtores e exibidores, esses filmes acabaram sendo vulneráveis nas mãos de empresários e dos aparelhos de repressão, que utilizaram os registros em investigações contra lideranças dos movimentos. Por outro lado, já havia uma crescente sindicalização de trabalhadores do cinema, como os projecionistas. Alguns desses fatos mostraram a necessidade de produzir  filmes à margem do grande cinema comercial, com produções que não mais condenariam e estereotipariam os trabalhadores, mas apoiariam as suas lutas.[10] Dois meses depois dessa conversa nasceria o  Cinema do Povo.

Cerca de vinte pessoas fazem parte inicialmente do grupo, que negava o sectarismo e reunia militantes de diferentes posições políticas como socialistas e antimilitaristas. Como acontece em praticamente todo agrupamento político, as discordâncias se fazem presentes, o que pode ser visto nas opiniões em relação à participação no processo eleitoral, que separavam anarquistas e socialistas. Estavam presentes intelectuais, artistas e operários.  Além do apoio nas mobilizações operárias, os filmes lutariam contra a guerra e “todas as iniquidades sociais”. [11]

Lotado no Bairro 17 de Paris, mais especificamente na Casa dos Sindicalizados, o Cinema do Povo era financeiramente dividido em 800 partes sociais de 25 francos. Cada cooperado tinha direito a, no máximo, 15 partes, embora todos só tivessem direito a um voto. Metade iria para o fundo coletivo, 20% para a luta contra o patronato e apoio às vítimas da repressão e os 30% restantes para os cooperados. [12] O grupo fez filmes de ficção como o longa Les misères de l’aiguille (As misérias da Agulha, 1914), onde é retratado o drama da mulher operária, além de atualidades como Les obsequies du citoyen Francis de Pressensé (O funeral do cidadão Fracis de Pressensé, de mesmo ano), onde acompanhamos o funeral do combativo presidente da Liga dos Direitos do Homem. Ainda em 1914 tivemos um prenúncio da montagem intelectual que seria tão usada pelo cinema político na representação dos contrastes sociais: o filme L’hiver! Plaisir des riches! Souffrances des pauvres! (Inverno! Prazer dos ricos! Sofrimento dos pobres!). Nele vemos, numa montagem paralela, os ricos se divertindo numa pista de patinação enquanto os pobres sofrem numa fila para pegar comida. Mas a produção mais importante do grupo foi La commune : cuidadosa reconstituição dos fatos que marcaram a Comuna de Paris. [13] Destaca-se no grupo a figura do ator e diretor Armand Guerra, que depois também vai fazer parte do cinema anarquista na Revolução Espanhola.

Isabelle Marinone, em seu livro Cinema e Anarquia, diz que “A experiência do Cinema do Povo marcou o nascimento do ‘cinema militante’ de base associativa” na França. [14] Mas podemos nos arriscar a dizer que essa foi a primeira experiência do cinema militante tal qual conhecemos hoje. Nele estão presentes todas as características que marcam um grupo como esse até hoje: a produção de base coletiva, a inconformidade com as imagens veiculadas pela mídia comercial em relação ao oprimido e a vontade de construir meios alternativos de produção e circulação, para se contrapor aos meios comerciais. Esta experiência guarda semelhanças tanto com os grupos surgidos no pós-maio de 68, (Grupo Medvedkine, por exemplo)  como os diferentes coletivos que aparecem hoje, de vídeo popular, vídeo-ativismo e outros movimentos que se utilizam do audiovisual como ferramenta. A história do cinema militante/político/popular/ativista é longa desde então e dura até hoje nas centenas de coletivos que lutam por uma outra imagem e representação das lutas socias. Mas, em todos estes grupos, vemos uma mesma partida. Surge de mentes que se juntam, discutem a produção das imagens hegemônicas, se organizam, lutando para produzir e exibir um cinema próprio e uma outra representação a partir daqueles que não possuem o poder econômico, político e simbólico.

Gabriel de Barcelos

Atualização: Este texto fez parte do processo de escrita da minha tese de doutorado, chamada “Cinema Militante, videoativismo e vídeo popular: a luta no campo do visível e as imagens dialéticas da história”, que defendi em agosto de 2014, na Pós em Multimeios da Unicamp. Para lê-la, clique aqui 


[1] Eric J. Hobsbawn, 1977, Paz e Terra, São Paulo, A era das revoluções: Europa 1789-1848
[2] Ibidem
[3] Luckacs, George. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Pág 40
[4] Charney, Leo. Schartz, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001. [5]  Machado, Arlindo. Pré-Cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 2007 [6] Ibidem
[7]  Sobre a construção da figura do intelectual e a discussão sobre o seu papel hoje, ler  Novais, Adauto (org.):  O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Cia da Letras, 2006 [8]  Anônimo. Le Cinema du Peuple, sociéte coopérative anonyme à personel et capital variables. In: Le  Libertaire, Paris, 13 septembre 1913. Citado por MARINONE, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história obscura do cinema na França (1895-1935). Rio de Janeiro: Azougue, 2009
[9] Marinone, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história obscura do cinema na França (1895-1935). Rio de Janeiro: Azougue, 2009
[10] Ibidem
[11] Ibidem
[12] Anônimo. Le Cinema du Peuple, sociéte coopérative anonyme à personel et capital variables. In: Le  Libertaire, Paris, 13 septembre 1913. Citado por MARINONE, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história obscura do cinema na França (1895-1935). Rio de Janeiro: Azougue, 2009. p. 60
[13] Marinone, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história obscura do cinema na França (1895-1935). Rio de Janeiro: Azougue, 2009
[14] Ibidem
[15] Ibidem
[16] Ibidem
[17] Ibidem Foto: filme La Commune (1914)
Abaixo, alguns dos filmes do Cinema do Povo (colaboração Biblioteca Terra Livre) e o filme L’affaire Dreyfus, de Melies

 

Nações Unidas decidem abolir todos os bilhetes de passagem

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chaplin3

Em reunião hoje, na ONU, líderes de todos os países do mundo decidiram, de comum acordo, acabar com a cobrança sobre qualquer deslocamento geográfico, seja em ônibus, trens, navios ou aviões. No mesmo encontro, deliberaram sobre o fim de qualquer fronteira, deixando os passaportes como meros amontoados de papeis.

Nos jornais, em primeira página, em inúmeros editoriais e artigos, perguntas são feitas:

– O que será do mundo?

– Acabará o Estado-Nação?

– O que será feito das identidades regionais e nacionais?

– As novas gerações não terão mais raízes?

– Todos virarão nômades?

– Será o fim da agricultura?

– A modernidade sofrerá um retrocesso?

– Quem pagará por tudo isso, afinal “não existe almoço grátis”?

– Viveremos a plena liberdade?

– A cobrança do capital impede a liberdade?

– Acabarão os estereótipos e fetiches em relação às cidades, estados, países?

– Será, finalmente, a concretização do famoso direito de “ir e vir”, tão alardeado pela chamada Sociedade de Direito?

– Os povos se enfrentarão?

– Haverá desemprego?

– Haverá mais trabalho?

– Existirá o trabalho?

– O ser humano alcançará um conhecimento de mundo sem igual?

– As pessoas deixarão a internet?

– Como os patrões manterão suas empresas?

– Ou sobrará mais dinheiro para o trabalhador se divertir, se instruir?

– O que surgirá desse livre intercâmbio entre povos?

– Famílias e antigos amores vão se reencontrar?

– O mundo será descentrado?

– Nossa vida será um grande acaso e devir, quando poderemos, do dia pra noite, resolver ir para Petrolina ou Bombaim?

– Onde moraremos?

– Quem seremos nós?

– Como será o mundo?

Gabriel de Barcelos

 

Vídeo de Inácio, do Projeto Ciclovida, no Ceará (indicação do meu amigo João da Silva)

 

Nota: Ao terminar de escrever esse texto, vi uma grande semelhança com trechos do livro Teorema, do Pasolini. Não fiz  inspirado nele, nem lembrava disso, na verdade. Mas, como este processo criativo é bem complexo, misturando diferentes influências não-conscientes, achei justo citá-lo.